segunda-feira, 18 de agosto de 2008

De dentro é outra coisa

Virei aqui de vez em quando tratar de livros e filmes sobre futebol. Sem o compromisso de acompanhar as novidades ou recomendar os melhores, mas unicamente com a intenção de chamar a atenção do leitor para a existência de obras que, independentemente de serem boas ou ruins, possam ter algum interesse para quem acompanha futebol no dia-a-dia.

Começo pelo documentário Zidane: Um Retrato do Século XXI (Zidane: Um Portrait du 21 ème Siécle, França, Islândia, 2006, 86 minutos), dirigido pelo francês Phillipe Parreno e pelo escocês Douglas Gordon, dois artistas plásticos estreantes no cinema. Não, não é meu filme preferido sobre futebol: é apenas o último que vi e um dos que mais interesse – e polêmica – pode gerar, razões suficientes para que eu o escolhesse para abrir a série de comentários cinematográficos.

O documentário não é uma biografia do craque francês. Aliás, nada conta sobre sua trajetória. É o registro de uma única partida do jogador, pelo Real Madrid, contra o Villarreal, em 23 de abril de 2005, pelo Campeonato Espanhol. O último jogo de Zidane com a camisa do time madrileno no estádio Santiago Bernabeu. Informações secundárias para os diretores Parreno e Gordon. Eles não foram lá filmar um jogo de futebol: foram basicamente filmar Zidane, e o fizeram de uma maneira original, ousada e muito, muito esquisita.

Os cineastas espalharam dezessete câmeras pelo estádio, a maior parte delas no nível do gramado, e apontaram-nas quase exclusivamente para o meia francês. Equipamentos de alta definição, entre os quais as duas maiores teleobjetivas do mundo, cedidas pelo exército norte-americano. Na edição, não fizeram a menor questão de contar a história da partida, embora seja possível, sim, compreender o que está acontecendo. Preferiram, em vez disso, mostrar Zidane, só ele, correndo, andando, parado, eventualmente falando, vivendo à sua maneira aquele jogo de futebol. A câmera, fechada no jogador, sai dele de vez em quando para uma panorâmica do gramado. Às vezes enquadra em segundo plano os outros atletas. Mas o foco é Zidane. O áudio ora privilegia o barulho dos jogadores correndo no campo, ora a respiração do meia francês, ora a agitação dos torcedores, ora a trilha sonora da banda escocesa Mogwai (tão estranha quanto o conjunto da obra). E vira e mexe faz-se silêncio total. Trechos de entrevistas (só o som) do jogador do Real sobre sua relação com o futebol e pedaços da transmissão da TV espanhola também são utilizados. O resultado é que, no documentário, o futebol é mostrado de uma maneira jamais vista, que nem de longe lembra as habituais transmissões das emissoras de TV.

A crítica de cinema não chegou a uma visão consensual sobre o filme. Muito já se escreveu a seu respeito e as opiniões são as mais diversas. O Diário de Notícias, de Lisboa, considerou-o “um clássico instantâneo”. O Hollywood Reporter, por outro lado, acha que o documentário não mostra nada além de “um homem careca, de short, que já passou da flor da idade, encharcado de suor e com expressão perplexa no rosto”. A Reuters, nem tão empolgada nem tão desinteressada, entendeu que “o filme parece defender a idéia de que o futebol não passa de um esporte, sem significado maior, que envolve homens correndo por um campo e dando voltas por um gramado”.

No Brasil a discussão também foi boa. Eduardo Valente escreveu, no site Cinética, que o interesse pelo documentário “está longe de ser exclusivamente dos fãs de futebol, como se poderia imaginar (embora a experiência destes seja provavelmente mais intensa – e mais ainda dos que têm o hábito de jogar futebol)”. Luiz Carlos Merten, de O Estado de São Paulo, julgou que Parreno e Gordon transformaram um jogo que não tinha nada de excepcional “em algo verdadeiramente fora de série”. Luiz Zanin Oricchio, também do Estado, foi além: “Para o amante do esporte, o filme tem um soberbo valor documental. (...) O trabalho dos cineastas é magnífico”. Mas Amir Labaki, da Folha de São Paulo, não gostou de ver e não entender que diabos Zidane tanto fazia zanzando de um lado para o outro: “É falha a articulação entre a visão geral do jogo e a contribuição específica de Zidane”. Não gostou mesmo: “Ao fim, fica um duplo sabor de frustração. O filme não é tudo o que promete, e Zidane não estava num daqueles dias iluminados”.

Não vou entrar nesse debate, mas uma coisa precisa ser dita: um filme tão diferente sobre futebol, capaz de gerar essa polêmica toda, merece ser visto ao menos uma vez por quem gosta do esporte. Apesar de que, dentre as pessoas que conheço, as que mais se entusiasmaram com o documentário foram justamente aquelas que não gostam de futebol ou acompanham-no quase com indiferença, sem identificação com algum clube.

Os admiradores do filme, conhecedores de cinema ou não, são unânimes em apontar como seu maior mérito ter retratado o jogador de futebol, pela primeira vez, no papel de um solitário, entregue a si mesmo durante 90 minutos, embora tenha a companhia de dez atletas, milhares de torcedores e um imenso aparato de mídia. Os que não gostam do documentário freqüentemente desistem de vê-lo até o fim, entediados com a experimentação dos diretores e saudosos da transmissão tradicional.

Zidane: Um Retrato do Século XXI realmente exige paciência e boa vontade do expectador. Mas nada que um torcedor não possa e já não esteja acostumado a suportar. Afinal, Zidane, pegando pouco na bola, caminhando ou não fazendo nada, oferece mais espetáculo do que muita partida que a gente só vê até o final de teimoso. Aliás, a idéia inusitada dos cineastas Parreno e Gordon dificilmente teria qualquer êxito, fosse outro o protagonista.

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